Qualquer crise é apenas, no fundo, a
projeção de nossa angústia existencial
Enrique Vila-Matas, Dublinesca
Confesso que,
ao ouvir essa máxima do cineasta e aforista Alessandro Santana, fiquei meio que
pasmo tanto com sua indignação em relação ao nosso eterno marasmo cultural
provinciano quanto por conter um dos dados elementares da condição humana: a
repetição. O que, psicanaliticamente, chamamos
de compulsão à repetição.
Não pensem que vou insistir que apreendam este difícil
conceito psicanalítico que mesmo a Freud
surpreendeu, não; antes tentemos visualisar o que título nos propõe: um gol contra
que se repete eternamente. Talvez isso provoque um sincero esgar –– aversão
instantânea. Entretanto, julgamos que, imerecidamente, repetimos infortúnios e
situações desagradáveis ao longo da vida. Alguns pedirão: fale de modo mais
direto sobre o que é essa repetição! Certamente. Não é incomum o sujeito, em um
desabafo incontido, lamentar que mais uma vez cometeu erros que jurara evitar.
Isto desde compulsões comportamentais, brigas, ira, encontros e desencontros
amorosos; o pânico ocasional, mas nunca ausente de todo.
Provavelmente, seja isso que o título nos
evoque: um incômodo quase nauseante, pois não queremos saber que repetimos.
Certa vez falei o aforismo a algumas pessoas e o efeito não me pareceu nada
agradável, mesmo aos que não têm pendores futebolísticos, aliás nem precisava.
Até agora tem parecido confuso o que falo, mas vejamos uma simples compulsão de
lavar, incessantemente, as mãos, por
exemplo –– deixemos de lado o diagnóstico imediato, ligeiro, de toc (transtorno
obsessivo compulsivo) –– verifiquemos
que não há uma justificativa higienista e racional para a execução insistente
de tal ato, porém o executor, tomado por essa compulsão, nos apresentará
inúmeras justificativas para seu ato de lavar as mãos. Então, perguntarão: por
que se repete esse comportamento ? Alguns dirão, primeiramente, que se trata de
alguma disfunção neurológica ou comportamental; realmente é uma saída mais
fácil que buscar uma etiologia, causa, subjetiva (psíquica) para essa pequena
repetição. Difícil aceitar, mas devo dizer que essa compulsão funciona para o
sujeito, inconscientemente, como uma barreira, uma tampa, para que questões
subjetivas suas não invadam seu pensamento consciente.
"Melhor
é impossível"(1997) é um filme premiado com Jack Nicholson e Helen Hunt
que trata das desventuras amorosas, compulsões e gols contra de um escritor
renomado vivido por Jack Nicholson. Nessa película todo pequeno inferno
neurótico está jocosamente descrito, já que se trata de uma comédia. As
evitações, hesitações e atos mecânicos que o personagem realiza em seu
comportamento podem nos indicar, detidamente, que eles servem também como
bloqueio ao afeto em suas relações. O ato compulsivo evita, canhestramente, que algo do ser do sujeito fique sob o sol. Caso o
pensemos com mais atenção, o ato compulsivo repetido à exaustão, forma o que
chamei de barreira, de contenção, para
que o indivíduo se aliene quanto a determinado afeto que não suporta em si e
que o angustia no átimo de sua aparição. Paradoxalmente, o ser humano carrega
em seu psiquismo o que lhe é familiar e estranho; sei que os céticos pensarão
que tal afirmação é artimanha psicanalítica; porém a estranheza que o sujeito pode sentir em si,
já que julga não se conhecer totalmente, tende a levá-lo a procurar o que se
denomina como auto-conhecimento. Direi que a psicanálise não trata disso, senão
de um saber sobre si –– e não há aí um
tropeço tautológico**. Pois, a concepção de auto-conhecimento difere do que
pode ser encontrado pelo paciente em um divã psicanalítico. Na tradição
filosófica saber (do latim sapere) designa
não apenas o conhecimento técnico, mas algo além que reside na aplicação da virtude.
Mas a compulsão à repetição freudiana não se restringe
apenas a atos mecânicos do comportamento. Às vezes, a segura distância da
posição de mero observador possibilita
que se enxerguem os impasses alheios com uma frieza quase científica; aí se pensa
como o vizinho se envolve sempre no mesmo tipo de relacionamento que o
desgasta, que o corrói, mas ele continua ali a rondar os bares, inferninhos da
vida e neles capta sempre o mesmo tipo de relacionamento, de encontro. O observador
distante, por mais que julgue, guarda uma tranquilidade impassível, pois aquilo
se passa apenas com o vizinho; porém as repetições daquele continuam ganhando
livre curso por mais que não sejam percebidas por sua posição de circunspecto
observador. O hábito pedante, renitente,
de citar filmes me impele a mais uma rápida referência cinematográfica: “
Feitiço do tempo ” estrelado por Bill Murray e Andie Macdowell, pois acredito
que capta o que se pode entender por compulsão à repetição. Possível que alguns
não aprovem essa referência para o tema da repetição, porém fica a cargo do
leitor tecer suas considerações. Curiosamente, cito duas comédias ao me referir
à repetição, talvez propositadamente ela tenha as facetas de sofrimento e de
chiste, sendo tragicômica.
Em um corrosivo texto, um libelo, chamado “ A psicanálise
verdadeira, e a falsa” Jacques Lacan desfere duros golpes contra a obscurantista perspectiva da psicologia do eu que centra seus
recursos em prol da adaptação do sujeito a patterns
comportamentais e sociais –– evidente depauperamento humanístico e existencial.
Também, já em relação à compulsão à repetição, Lacan declara que “ (...)
descoberta por Freud, foi também por ele identificada à insistência de uma
verdade de que continua a clamar no deserto da ignorância”¹. Para que talvez algum
saber, sobre o inconsciente, vencesse o deserto da ignorância de si, do
comodismo da existência, eis o objetivo da causa
freudiana que não deve ser confundido com terapias que colocam um tampão
sobre a fenda da subjetividade –– o inconsciente.
Inegável que um gol contra ainda é um gol, não deixa de ser
uma realização por mais incômoda que possa parecer –– como uma repetição amarga
que insiste para que o novo apareça e aflore como saber. Não raro, a pessoa
procura um consultório de psicanálise por não mais suportar suas “repetições”
que chamamos de sintomáticas; ali a fala, guiada pela técnica analítica,
possibilita que certa porção da repetição do sujeito se desate para o novo ––
algum apaziguamento ante o que se repete e o que se é.
Os aforismos de Alessandro Santana deveriam ser editados em
folhinhas de calendário para que propiciassem certa reflexão matinal. Talvez
essa tornasse o desjejum um pouco indigesto tanto quanto a subjetividade nos
tempos da medicalização maciça e do higienismo
comportamental.
* Texto publicado no site do jornal Cinform online em 2010.
**Tautologia: vício de
linguagem que consiste em repetir o mesmo pensamento com palavras sinônimas.
¹ Lacan, J. Outros escritos.
2003.